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Os perigos dos perfis de denúncias

Dezenas de alunos da UFPel foram acusados de fraudar cotas e muitos comprovaram a inocência; universidade está averiguando as denúncias

Jô Folha -

1d464a73-dc97-4c5f-87bb-a97654769901Denúncias nas redes sociais têm tomado grande proporção (Foto:  Jô Folha - DP)

Nos últimos dias, uma série de contas anônimas invadiram o site de rede social Twitter em todo Brasil. O objetivo era um só: denunciar fraudadores de cotas das universidades públicas. Em Pelotas a moda também chegou e em questão de minutos o perfil criado acumulava mais de cinco mil seguidores. Por lá, apareciam denúncias - na maioria das vezes com nome completo, foto e o print de chamada do Sistema de Seleção Unificada (Sisu) - de supostos fraudadores, que teriam ingressado na Universidade Federal de Pelotas (UFPel) de forma ilegal.

Com a exposição, dezenas de estudantes acabaram sendo agredidos virtualmente. E muitos deles também acabaram provando que estavam sendo acusados injustamente. Esse foi o caso do estudante de Agronomia Andrey Schneider e do de Arquitetura e Urbanismo, Pedro Rizzolo. Andrey ficou sabendo que foi denunciado minutos depois, mas na hora não levou a sério. “Achei que fosse uma bobagem”, disse. Em seguida, começou a ter noção da proporção que a publicação tinha e a cada amigo que o chamava para saber da situação, o susto aumentava mais. O estudante do 9° semestre foi acusado de ingressar na UFPel através do Sisu pela cota L2 (candidatos autodeclarados pretos, pardos ou indígenas, com renda familiar bruta per capita igual ou inferior a 1,5 salário mínimo e que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas). Mas ele iniciou a vida acadêmica pelo Programa de Avaliação da Vida Escolar (Pave), utilizando a cota L3 (candidatos que cursaram todo o ensino médio em escolas públicas, independente da renda).

“Eu cheguei a pensar que era verdade e duvidar de mim mesmo”. Schneider explica que apagaram o nome de alguém da lista de cota L2 para colocar o dele. Por isso, nada fazia sentido, pois ele mesmo se enxergava como culpado. Com a ajuda dos amigos ele conseguiu acessar o sistema do Pave, encontrar a lista com o nome verdadeiro e encaminhar ao twitter anônimo exigindo uma retratação. O perfil pediu desculpas ao estudante e confessou que não havia checado a informação, mas nesse tempo dezenas de comentários ofensivos já enfeitavam a publicação. “Nunca defenderei nenhum fraudador, mas temos que ter cuidado em como denunciar”, ponderou.

Com Pedro a situação não foi muito diferente. Mas acontece que ele está em Portugal fazendo um intercâmbio e vivendo a diferença de quatro horas de fuso horário para o Brasil. O futuro arquiteto foi acordado pelos amigos para saber do ocorrido. “Eram 4h30min, instantaneamente pensei que houvesse acontecido algo com alguém da minha família”, disse. Mesmo com a consciência tranquila o sentimento de tristeza veio, mas ele garante que naquele momento o único foco era expor a verdade. Nesse meio tempo, muitas pessoas acharam o perfil dele no Instagram, e além de ser escrachado no Twitter, também teve que ler xingamentos e deboches via mensagem privada na outra rede social. “O que eu fico mais impressionado é a maldade das pessoas, que essas, sequer verificaram a veracidade das alegações do Twitter e vieram me ofender”. Rizzolo ingressou por ampla concorrência, mas foi acusado de ter usado a cota L1 (que cursaram todo o ensino médio em escolas públicas, com renda familiar bruta per capita igual ou inferior a 1,5 salário mínimo). O print enviado para a denúncia era de um semestre anterior, em que o estudante se inscreveu pela L1, já que garante que preenchia todos os requisitos exigidos, mas acabou não sendo aprovado. Diferente do que aconteceu com Andrey, o perfil não se retratou com Pedro, “deixando margem para qualquer desavisado ver a publicação e seguir me acusando e ofendendo”. E de forma pública o pedido de desculpas não irá ocorrer, já que na segunda-feira (8) a página foi suspensa.

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Perfil foi suspenso na última segunda-feira (Foto: Jô Folha - DP)

As consequências psicológicas

A psicóloga Josiane Gonçalves salienta a importância das denúncias de qualquer forma de violência, preconceito e discriminação. No entanto, é necessário fazer isso de forma responsável e coerente, pois exposições vazias e sem provas concretas podem acarretar em prejuízos em todas as esferas da vida do indivíduo exposto. “Enfatizo o sofrimento psíquico, pois pessoas expostas injustamente podem desenvolver uma série de transtornos emocionais”, disse. A profissional destaca que quadros depressivos e sintomas ansiosos podem ser comuns nessas situações e quando não recebem o devido suporte e o caso ganha grandes proporções, é recorrente o surgimento de sentimentos de desesperança, impotência, bem como ideação suicida em alguns indivíduos.

Ela explica que o acesso amplo à tecnologia e às redes sociais facilitam essa prática, pois as pessoas se sentem mais seguras através de um possível anonimato. “Algumas vítimas possuem uma segurança maior para efetuar a denúncia através de redes sociais, para muitas é a única forma de conseguirem externar a violência que sofreram, porém é notório que na ocorrência de exposições injustas, o sofrimento das vítimas é invalidado, ocorrendo o fortalecimento do campo da dúvida nos demais casos que tem conotação verídica”, completou. Outro ponto destacado é a especificidade de cada caso, pois todo ser humano é subjetivo, portanto as motivações para exposições inadequadas e injustas são abstratas. “Em alguns casos, as pessoas são movidas por vingança pessoal, em outros casos por pura irresponsabilidade e ausência de empatia”.

É crime!

O professor visitante da Unisinos e Uniritter e advogado criminalista, Marcelo Moura, adianta que, infelizmente, é necessário reconhecer que existe essa estratégia ilegal para ingressar nas universidades públicas. E quem pratica esse tipo de fraude poderá ser acusado de falsidade ideológica e muitas vezes falsidade de documentos. “Fazem uso de uma causa democratizante e isso nos causa repulsa”, completou.

Quando essas denúncias ocorrem de forma incorreta, elas se tornam problemáticas, já que podem gerar respostas concretas quando trazidas para o mundo real. Quando a acusação não é verdadeira ela se torna ainda mais grave, pois produz uma série de calúnias e difamações sobre pessoas que não possuem nenhum vínculo com a fraude. “O acusado pode ter a vida inviabilizada por isso”, ressaltou o profissional. Moura destaca o momento histórico de enfrentamento ao racismo em que o mundo vive e alerta para a responsabilidade de estampar o rosto de um jovem que pode ser inocente.

Tanto quem criou como quem acusou pode ter provocado crimes contra a honra, que são a calúnia, a difamação e a injúria. “Até quem comentou na publicação pode ter praticado”. Esse tipo de delito se torna ainda mais grave, pois ganha a conotação de crime digital e isso faz com que a responsabilidade de quem praticou também aumente. Aos lesados, dois caminhos podem ser percorridos: o do sistema de justiça criminal, que responsabiliza quem praticou o ato; e o sistema civil, que visa a reparação de danos.

A confiança na rede social

Conforme a professora da UFPel e especialista em sites de redes sociais, Raquel Recuero, a rede social é escolhida para fazer esse tipo de denúncia justamente por proporcionar mais impacto. “Gera publicização”, explica. Segunda ela, existe uma conexão com o momento atual, que grita por um basta no racismo institucionalizado e enraizado no Brasil. Como em inúmeras ocasiões denunciar no órgão competente não dá resultado e gera pouco impacto coletivo, já que o processo fica apenas entre a instituição de ensino e o denunciado, a escolha pela exposição na rede social acaba prevalecendo. “Acredito que publicizar é uma tentativa não apenas de expor o racismo institucionalizado, mas de mostrar o quão presente está”, disse a docente.

O que diz a UFPel?

Em nota, a UFPel garantiu estar analisando as novas denúncias para dar uma resposta à sociedade. O coordenador da Coordenação de Inclusão e Diversidade (CID), Alexandre Marques, explicou que o núcleo acompanha as fraudes e averigua cada denúncia que chega. Destas últimas, uma comissão específica está sendo montada que deverá se reunir na próxima terça-feira. A intenção é avaliar todas as acusações e quem usou da fraude para se beneficiar, a nova comissão irá tomar todas as medidas cabíveis para reparar o erro. 

Marques salienta que o CID sempre esteve aberto à comunidade e que todas as denúncias podem ser efetuadas por lá. “A comissão irá se debruçar especificamente nesta demanda e estará atenta nas apurações”, garantiu. Quem deseja efetuar alguma denúncia deve entrar em contato com [email protected].

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